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terça-feira, 16 de abril de 2013

Minha passagem pela Mitra! - Publicado por Manuel José Santos Barão

EU E A MITRA - situavam-se na rua do açúcar, 34 – Poço do Bispo



A minha Admissão

Inalterável continuou a Mitra, até que fosse concluída a transferência da tutela ou seja, do Ministério da Administração Interna para o Ministério dos Assuntos Sociais.

No Diário da República nº 44 de 22 de Fevereiro de 1980 – 2ª serie, podia observar-se no despacho de 30 de Setembro de 1979, da Secretaria de Estado da Segurança Social o seguinte mapa de pessoal do Centro de Apoio Social de Lisboa (Mitra), o qual visava a substituição de todo o pessoal da Polícia de Segurança Pública por agentes civis, que no caso do serviço de saúde era o seguinte

2 Médicos clínica geral
2 Médicos Psiquiatras
2 Enfermeiros chefes
2 Enfermeiros subchefes
10 Enfermeiros de 1ª classe
16 Enfermeiros de 2ª classe
16 Enfermeiros de 3ª classe.

Referente aos enfermeiros, através do aviso público publicado no Diário da República nº 26 – II serie de 22 de Janeiro de 1981, poderia ler-se:

Para conhecimento dos interessados se publica que se encontra aberto, pelo prazo de 30 dias, a contar da data da publicação deste aviso no Diário da República, concurso documental aprovado por despacho do Secretário de Estado da Segurança Social de 14 de Janeiro de 1981, para preenchimento de dezasseis vagas de enfermeiro de 2ª classe Letra J, do mapa de pessoal deste Centro.

De acordo com o Regulamento do Concurso da Carreira de Enfermagem Hospitalar, aprovado pela portaria nº 468/73, de 9 de Julho, poderão candidatar-se os diplomados com o curso geral de enfermagem ou curso de enfermagem psiquiátrica e ainda os diplomados com o curso de promoção de enfermeiros de 3ª classe.

Os interessados deverão apresentar requerimento em papel selado, e acompanhados de publica-forma autenticada dos cursos respectivos.

Foi através deste concurso público que realizei a minha admissão na Mitra. Após entrevista com a directora do serviço de pessoal e recursos humanos do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, foi-me solicitado a minha imediata entrada em funções, com todas as garantias do funcionalismo público, inclusive a garantia de frequência de um curso de formação para coordenar os serviços de enfermagem da instituição, na Fundação Calouste Gulbenkian. Assim, após me ter demitido da Clínica Psiquiátrica S. Estêvão e do Centro de Enfermagem de Oeiras, iniciei funções na Mitra
em 1981.




Tempos iniciais na Mitra

Com 900 utentes internados, divididos em 10 secções, sendo uma (Quinta do Pisão – Alcabideche), onde quinzenalmente me deslocava. As restantes 9 secções, situavam-se na rua do açúcar, 34 – Poço do Bispo – Lisboa, e tinham as seguintes designações:

Camarata de rapazes, camarata de homens, enfermaria de homens, inválidos homens, enfermaria de mulheres, inválidas de mulheres (secção onde a Laura foi encontrada morta), Camarata de mulheres, creche e camarata de raparigas.

Desde o recém-nascido abandonado à criança em risco no meio familiar, até ao ancião de 94 anos; homens mulheres e crianças criavam um estranho e cinzento convívio, tal como os tons negros das pedras da “parada” tipo militar, calcorreada vezes sem conta por todos eles, mais intensamente no horário das refeições.

Todo o tipo de patologias estavam ali representadas, em especial ligadas á idade e exclusão social; Esquizofrenia, Oligofrenia, Autismo Tuberculose, Lepra, Neoplasia, Hepatites, HIV e outras tantas. De referir que cerca de 70% estaria de alguma forma sofrendo de varias patologias psiquiátricas.

Quando iniciei funções como enfermeiro, ainda alguns sectores eram preenchidos total ou parcialmente por elementos da Polícia de Segurança Pública ali destacados; por exemplo: Cozinhas, armazéns gerais, enfermagem, oficinas e segurança. Comandava esta força de segurança o chefe Luís Filipe Branco, que também ali residia, e muitas vezes chegou a resolver situações ligadas à Mitra, que a própria direcção do Centro Regional de Segurança Social não conseguia. Todos os agentes da polícia contribuíam de um modo geral e diariamente, para minimizar ao máximo as lacunas existentes; umas complexas e de longa duração, outras bem recentes, muitas delas causadas pela costumeira resistência às mudanças por parte do serviço social na pessoa de sua chefe “Joana”. Curiosamente esta cínica personagem, em carta enviada ao Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, referenciava-me como um (bom coordenador dos serviços de enfermagem), e no mesmo dia e hora, em carta adenda à anterior (arrasava-me das piores informações).

Sempre a trabalhar

Presto aqui pública homenagem a todos os agentes da PSP que comigo colaboraram, e em sintonia me ajudaram na melhoria possível das condições humanas dos internados, quer na “Quinta do Pisão em Alcabideche”, quer na rua do açúcar, no Poço do Bispo em Lisboa… Bem-hajas, chefe Luís Filipe Branco, agentes Purificação, seu marido, Gonçalves, Peixeiro, Quadrado, Magalhães, Paredes e tantos outros que (pela extensão do tempo) a memória me subtraiu seus nomes. Sei bem que não foi nada fácil o vosso trabalho… Obrigado Amigos!

Os vários pavilhões militarmente dispostos, bilaterais de uma “parada” de pedra escura, sugerem um ambiente austero, provavelmente o mesmo que meio século atrás. Depois de entrar-mos e imediatamente a seguir à portaria no lado esquerdo, encontramos as instalações da Polícia de Segurança Pública. No pavilhão seguinte, toda a área do 1º andar existia uma espécie de museu, guardando (muito mal conservados) sobretudo instrumentos musicais e outros objectos ligados ao teatro. No rés-do-chão, toda a área estava dividida entre homens e mulheres, onde funcionavam duas grandes salas de lazer, com televisão, alguns jogos e um espaço para eventos com um pequeno palco. O refeitório e um pequeno bar do pessoal faziam parte do espaço seguinte. No andar superior encontrava-se a residência do chefe Branco, fiscal da Mitra. Por fim surgia o refeitório geral, cozinhas e armazéns de géneros.

Bem frontal à parada, erguia-se um alto edifício onde se situavam as camaratas dos homens e camaratas dos rapazes. O pátio em cimento, a seguir, serviu outrora para os banhos por “agulheta” nos dias mais quentes do ano.


Em terrenos superiores desse lado, ficavam os jardins, que possuía um painel de estilo Rococó tardio. “Este estilo artístico nascido em França no ano de 1700. Espalhou-se pela Europa no século XVIII, e é considerado também uma espécie de continuação do Barroco, modificado um pouco pela leveza e delicadeza com que se exprime. Ao contrário do Barroco, muito preso à pintura religiosa, o estilo Rococó espelha uma vida aberta e livre”.

Com acesso directo ao palácio, este era também o jardim onde as crianças brincavam com as ratazanas já descritas anteriormente, e onde algumas terão sido abusadas sexualmente.
Volta e meia, também algumas altas individualidades do país se banqueteavam naquele palácio, enviando os restos do repasto para o interior da Mitra (dentro de grandes lençóis), para ser distribuído pelos ali internados.

Após o célebre pátio, e de regresso à saída, fica um grande pavilhão que serve de armazém geral. A enfermaria de homens e o pavilhão de homens inválidos, respectivamente no 1º andar e rés-do-chão. O mesmo esquema se passava com a enfermaria de mulheres e pavilhão de inválidas (local da sinistra ocorrência). Aqui também o serviço de saúde tinha um pequeno espaço, onde durante o dia era separada a medicação a administrar aos cerca de 700 utentes.

No pavilhão seguinte funcionava a camarata de mulheres, que embora não doentes fisicamente nem idosas, costumeiramente se encontravam em estado deprimido, motivado geralmente pelo afastamento dos restantes membros familiares.

O serviço de saúde no rés-do-chão imediatamente a seguir embora bastante degradado, continuava a funcionar com três departamentos fundamentais; consultas médicas, enfermagem e farmácia. A porta principal dava também acesso à casa mortuária, à escola dos meninos e à creche no 1º andar.

Ficavam depois as oficinas gerais, onde (entre outras) se desenvolviam as actividades de metalúrgica, pintura sapateiro e marceneiro, quase todas ainda com responsáveis da polícia. No edifício ao lado, mulheres e raparigas trabalhavam em malhas, costura e artesanato variados.

Por fim, nos dois edifícios seguintes encontrava-se respectivamente; a secretaria, tesouraria, serviço de pessoal e direcção. O serviço social e camarata das
Raparigas no 1º andar.


Exterior da Mitra em calçada (igual ao interior) até 1986

CURIOSIDADES


Para quebrar a monotonia, de vez em quanto a Mitra também recebia pessoas que se destacavam da maioria dos internados, e quase nada tinha que ver com aquele ambiente.

Entre Fátima e a Amnésia

Recordo-me por exemplo de uma mulher Belga, que se perdeu da sua excursão a Fátima. Após quase 36 horas de marcha, descalça, em pleno mês de Agosto, foi detectada pelas autoridades que, por a senhora não possuir nenhuma identificação, também porque não compreendiam a língua de sua nacionalidade, a trouxeram para a Mitra. Pela exaustão a mulher não reagiu; foi imediatamente observada e assistida no serviço de saúde, e internada na enfermaria de mulheres, com o diagnóstico de desidratação grave, confusão e ansiedade, e queimaduras bilaterais dos pés de I, II, III graus. Fez os tratamentos adequados como soros antibióticos e os respectivos pensos diários. Também foi observada e medicada em psiquiatria, tendo alta cerca de 4 semanas depois, completamente curada. O embaixador do seu país deslocou-se à Mitra para uma visita de cortesia e providenciar o regresso do seu concidadão à terra natal. Teve também oportunidade de manifestar a sua gratidão, deixando nas mãos das
senhoras assistentes sociais um gordo cheque.


Miguel Westerberg

Famosos artistas internacionais ligados às artes plásticas tiveram (por qualquer motivo) uma paragem forçada na Mitra. É o caso do pintor Miguel Westerberg, que como todos os grandes artistas, jamais escondeu o seu passado; pelo contrário, a sua honra e nobreza denota a raiz de uma personalidade transparente, princípio base para identificar um verdadeiro bom exemplo de carácter humano.

Recentemente tive o grande prazer de o contactar, e espero sinceramente que antes da edição deste livro o possa pessoalmente rever. Registo contudo um breve excerto da carta que enviou a um seu amigo, revelando o ambiente então vivido na Mitra.

Caro amigo, em continuação à carta que te enviei, gostaria de te escrever um pouco mais sobre mim. Lembras de quando te falei da minha passagem pela Mitra em Lisboa?... Então vou contar-te por escrito da melhor forma possível, pois não sei muito bem como fui lá parar. Sei apenas o que o meu querido irmão Henrique me contou. Que minha mãe nos tinha deixado numa pensão em Lisboa, enquanto ia ganhar a vida. Como muito pequenos, cada um se virava como podia. Normalmente era o Carlos Henriques que tomava conta de nós, mas deves imaginar como era uma criança de 10 anos a tomar conta de outras três (eu a Mariana e a Tânia).

Certa altura as pessoas da pensão decidiram não querer aguentar mais, e chamaram a polícia enquanto a minha mãe estava fora. Depois disso fomos levados para a Mitra, creio que em 1976. A minha mãe ainda nos tentou de lá tirar mas foi tudo em vão, pois (segundo as autoridades) a sua vida não dava garantias de estabilidade familiar. Hoje pela manhã, lembrei-me de alguns momentos vividos naquela instituição. Uma das primeiras coisa que me recordo, é que dormíamos todos num grande dormitório, com meninos de um lado e meninas de outro. Para ir ao quarto de banho tinha de passar por um corredor no qual havia no chão um pavimento em vidro, e numa certa noite ao passar lá, reparei que um dos vidros estava quebrado, e eu não resisti a espreitar. Acredita, antes o não tivesse feito. Durante anos essa mesma visão me perseguiu. O que vi foi um morto dentro de um caixão e a seu lado a viúva que o velava com prantos e lágrimas. A partir dessa data nunca mais fui o mesmo, e à noite preferia urinar na cama a ir ao quarto de banho.

Outra ocasião fui separado das minhas irmãs, (o que me fez sofrer ainda mais) para um sector só de rapazes. Outra prova que tive de enfrentar foi a de ir à escola, pois no caminho tinha de passar pela tal casa mortuária. Como todos éramos pobres, as nossas roupas eram oferecidas, e só as trocávamos semanalmente. Um agente da polícia com um lençol branco amarrado pelas pontas despejava as roupas numa grande mesa, e cada um tinha de se virar. Muitas vezes cheguei a andar com calças muito largas e sem meias, mas durante a semana íamos trocando uns com os outros. Passei por outras experiências dolorosas e alucinantes que nem é conveniente relembrar, mas também tive experiências positivas. Foi na Mitra que tive o meu primeiro contacto com a arte por volta dos meus oito anos de idade.

Miguel Westerberg em S. Paulo - Brasil (2006)


Fernando o homem das facas


Pequenas brigas entre alguns internados eram até consideradas normais, e rapidamente solucionadas. Havia no entanto alguns internados mentalmente afectados que, embora referenciados e medicados, de vez em quando nos criavam sérias preocupações. Foi o caso do “senhor Fernando”, homem robusto com cerca de setenta anos, que já tinha cadastro pela morte à facada de um namorado da sua filha.

Certa tarde (sem ninguém saber onde tinha conseguido uma faca) o senhor Fernando espeta um colega na região abdominal, refugiando-se na camarata de homens onde dormia. Foram prestados os cuidados urgentes á vítima e enviada para as urgências hospitalares. Entretanto, o senhor Fernando continuava barricado na camarata, incendiando agora vários colchões, não permitindo (com a faca apontada) que ninguém ali entrasse. Fui chamado com alguns agentes da polícia para solucionar a situação. Habitualmente este internado respeitava-me e calmamente quando lhe falava ele obedecia. Mas nesse dia não dava ouvidos a ninguém, estava desesperado.

Tinha de agir e rapidamente! Pedi aos polícias para que através do andar superior se aproximassem o mais possível e ficassem atentos. Quando todos estavam a postos, segurei um colchão, dobrei-o e lancei-me contra o agressor derrubando-o, enquanto os agentes o imobilizaram. Foi imediatamente medicado com o “seu” SOS e depois levado pela polícia para averiguações. Mais tarde, eu próprio fui convocado pela polícia judiciária, para prestar declarações como testemunha e chefe dos serviços de enfermagem da Mitra.

Experiência fundamental

A minha experiência foi de facto fundamental não só neste episódio, como em toda a actividade desenvolvida na Mitra. Além de dez anos de exercício de enfermagem geral, enfermagem de guerra (Guiné -Tropas Pára-quedistas) e saúde pública, também já tinha realizado vários estágios extra-curriculares, bastante interessantes para todas as responsabilidades que iria enfrentar na Mitra; saúde materno infantil, cirurgia plástica/reconstrutiva, unidade de queimados, banco de urgências e psiquiatria. Foi também bastante útil o exercício de quatro anos em enfermagem psiquiátrica tendo como director o Dr. Galvão do H.J.M. Todas as informações de serviço referentes à minha actividade na Mitra sempre foram as melhores, assim por acréscimo, fui convidado a coordenar o sector da enfermagem. Aceitei o desafio sabendo á partida que não seria fácil levar por diante, a correcção de tudo aquilo que entretanto me apercebi estar errado.

Organização

Reorganizar o serviço de saúde seria o meu primeiro objectivo, pois todos restantes serviços da Mitra, giravam sobre esse núcleo. Assuntos urgentes de médio e longo prazo foram por mim entretanto referenciados, cancelando de imediato a forma praticada (até à data) de prevenção de parasitas, efectuado através de “DDT” pesticida altamente perigoso e já proibido em todo o mundo desde 1972. Também a higiene pessoal dos internados, vestuário, limpeza e desinfecção das instalações, superando rapidamente a sua degradação geral, as desratizações e humanização de todos os restantes serviços, faziam parte das grandes preocupações.

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